quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Exercícios I - Elisa


Aquela manhã mudou toda a sua vida, e a nossa. Aquela manhã em que se arranjou de forma cuidada. Via sentada em frente ao toucador do nosso quarto a pôr, com todo o cuidado o seu batom vermelho vinho. Estava linda. E eu ainda a amava.
Ao contrário do costume sobrou-lhe tempo antes de sair. Gastou-o sentada na ponta do sofá, pernas juntas, mãos nos joelhos. Os olhos fixos num qualquer ponto imaginário que não consigo adivinhar. Estática. Pareceu-me ver uma lágrima a escorrer-lhe pela cara. Mas desviei o olhar. Cobarde.
Às 8h22, em ponto, despediu-se de mim com o beijo de raspão do costume, não estranhei, e saiu calmamente para apanhar o comboio para Lisboa.
Já não voltaria. Só eu ainda não tinha percebido que há muito que ela já lá não estava.
Elisa subiu a avenida do bairro de subúrbio onde sempre morámos. 21 anos. Só depois de ela sair me lembrei que fazia, precisamente naquele dia, 21 anos que tínhamos entrado naquela casa cheios de sonhos e planos. Um cliché. Fiz questão de a pegar ao colo para entrarmos juntos, como iríamos ficar. Na altura magoou um cotovelo que bateu na ombreira da porta. Um mau augúrio. Rimos.
Eu já vivia nos arredores de Lisboa fazia alguns anos. Elisa ainda tinha a mítica pureza de quem sempre viveu na aldeia, mesmo durante os anos em que tirou o curso na Faculdade de letras de Lisboa. Tão típico. Tão há filme.
E como nos filmes os anos e a vida que fomos vivendo tirou-lhe o sorriso aberto, franco, com que nos primeiro anos me brindava ao acordar.
Só muitos anos depois, um dia com nada de especial, percebi que Elisa já não sorria. Mas, desde quando? Não soube responder-me. Nesse dia voltei-me para o outro lado, tapei a cabeça como o lençol branco bordado, do enxoval de Elisa, e voltei a dormir.

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