sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Exercício III - Elisa



A esperança é um engodo. Atrai-nos na sua teia, prende-nos os movimentos e suga-nos até cairmos exaustos.
Procurei por Elisa durante anos. Percorri os seus caminhos habituais durante meses a fio. Ou, pelo menos, aqueles que eu achava serem os seus caminhos. Senti-me a pisar as mesmas ervas, as mesmas pedras, o mesmo chão que Elisa. Uma forma de a ter.
Virei todas as esquinas de Lisboa, sempre convencido que era ali que iríamos voltar a tropeçar um no outro e, agora sim, permaneceríamos para sempre.
Perdi a conta ao número de vezes que gritei o seu nome durante a noite. Para depois abrir os olhos e encontrar o vazio da sua ausência. Pedro a conta ao número de vezes que te acaricie a pele e fizemos amor devagarinho... em sonhos.
Naquele dia decidi que era a última vez que faria o seu percurso de comboio. Seria a última vez que percorreria os caminhos de Elisa. Sentado no comboio, cansado, voltei a casa. Retive na memória o sorriso que o revisor me entregou.
Abri a porta de casa e olhei em frente, como sempre fazia em modo de ritual. Elisa estava sentada na ponta do sofá, pernas juntas, mãos nos joelhos. Nos lábios o batom vermelho vinho.


quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Exercício II - Elisa





O sorriso de Elisa. Aquele sorriso aberto que a maior parte das vezes termina numa gargalhada contagiante. Ria com a cara toda. Os olhos semi-serravam-se. Um traço fino de fundo azul, quase imperceptível.
Lembro-me bem de encontrar no Bairro Alto, o dos artistas, numa galeria da moda, com um ar propositadamente decadente, um dos escritores da moda, apesar da idade avançada, também ele com um ar propositadamente decadente... e um copo de whiskey na mão. Elisa tinha ficado em casa. Há algum tempo que tinha começado a ficar em casa. Sem razão visível, sem se preocupar sequer em inventar uma desculpa.
O escritor parou à minha frente, um obstáculo, e durante mais de meia hora não me deixou fugir. . Perguntou pelo sorriso de Elisa. E eu rebusquei uma desculpa no bolso do casaco, e passaria a usá-la sempre que estes obstáculos se impusessem no meu caminho. Já não me lembro que foi.
E durante mais de meia hora relembrou o piquenique em que Elisa declamou, com a sua voz profunda que lhe abandona o corpo, a sua poesia. “Elisa brilhou”, disse o escritor. Elisa brilhava sempre.
Vestia quase sempre o mesmo. Nesse piquenique tinha umas calças de ganga, tshirt e botas. Nada de especial, como gostava de andar.
Tudo em Elisa era especial naquele dia e em todos os dias, como sublinhou repetidamente o escritor durante aquela mais de meia hora
Acho que a certa altura deixei de o ouvir. Na minha cabeça ecoava uma pergunta. “Onde é que perdi Elisa?”

Exercícios I - Elisa


Aquela manhã mudou toda a sua vida, e a nossa. Aquela manhã em que se arranjou de forma cuidada. Via sentada em frente ao toucador do nosso quarto a pôr, com todo o cuidado o seu batom vermelho vinho. Estava linda. E eu ainda a amava.
Ao contrário do costume sobrou-lhe tempo antes de sair. Gastou-o sentada na ponta do sofá, pernas juntas, mãos nos joelhos. Os olhos fixos num qualquer ponto imaginário que não consigo adivinhar. Estática. Pareceu-me ver uma lágrima a escorrer-lhe pela cara. Mas desviei o olhar. Cobarde.
Às 8h22, em ponto, despediu-se de mim com o beijo de raspão do costume, não estranhei, e saiu calmamente para apanhar o comboio para Lisboa.
Já não voltaria. Só eu ainda não tinha percebido que há muito que ela já lá não estava.
Elisa subiu a avenida do bairro de subúrbio onde sempre morámos. 21 anos. Só depois de ela sair me lembrei que fazia, precisamente naquele dia, 21 anos que tínhamos entrado naquela casa cheios de sonhos e planos. Um cliché. Fiz questão de a pegar ao colo para entrarmos juntos, como iríamos ficar. Na altura magoou um cotovelo que bateu na ombreira da porta. Um mau augúrio. Rimos.
Eu já vivia nos arredores de Lisboa fazia alguns anos. Elisa ainda tinha a mítica pureza de quem sempre viveu na aldeia, mesmo durante os anos em que tirou o curso na Faculdade de letras de Lisboa. Tão típico. Tão há filme.
E como nos filmes os anos e a vida que fomos vivendo tirou-lhe o sorriso aberto, franco, com que nos primeiro anos me brindava ao acordar.
Só muitos anos depois, um dia com nada de especial, percebi que Elisa já não sorria. Mas, desde quando? Não soube responder-me. Nesse dia voltei-me para o outro lado, tapei a cabeça como o lençol branco bordado, do enxoval de Elisa, e voltei a dormir.

quinta-feira, 10 de março de 2016

Cantos

Encaixei-me no canto do meu ser indigo.
Corri assim todas as ruelas e travessas recônditas deste lugar.
Nada a fazer, nada mais a fazer.
O chão podre estala debaixo dos pés.
Tento não fazer barulho. Tentamos.
O indigo, cor por excelência, tenta recompor o que se estragou na passagem dos anos.
Nada a fazer, nada mais a fazer.
Nem o cristal ja nos consegue levantar.
Estamos contaminados. Estou.
Sento-me no chão, encaixo-me no meu canto.
E fico a ouvir um canto cristalino, muito ao longe.
A chamada para a morte.